Relator da OEA para liberdade de expressão mostra preocupação com falta de transparência de grandes plataformas de internet

Coalizão Direitos na Rede
6 min readSep 13, 2019

Em seminário promovido pela Coalizão Direitos na Rede, Edison Lanza destacou lacunas nos processos de moderação de conteúdo, como a inexistência de conselhos de controle externo, e avanço de desinformação nas redes sociais

Edison Lanza, relator especial para a liberdade de expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA)

Por Enio Lourenço

Na última terça-feira (10/09), Edison Lanza, relator especial para a liberdade de expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), esteve no Brasil para participar do seminário Grandes plataformas de internet e moderação de conteúdos: desafios para a liberdade de expressão e outros direitos humanos, que ocorreu na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

O jornalista e advogado uruguaio falou sobre problemas globais referentes à atuação pouco transparente de grandes plataformas como o Facebook, que tem transformando dinâmicas políticas e culturais de Estados nacionais, seja pela omissão do combate à desinformação ou na remoção unilateral de conteúdos que se convertem em censura, uma vez que os mecanismos de apelação disponíveis ao público são obtusos.

“Pela primeira vez na humanidade, os espaços públicos de discussão não são mais a praça, as câmaras e os congressos, mas as plataformas privadas”, afirmou Lanza durante o debate.

O evento foi organizado pela Coalizão Direitos na Rede em parceria com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Intervozes — Coletivo Brasil de Comunicação Social, Observatorio Latinoamericano de Regulación Medios y Convergencia (Observacom), Desarollo Digital, Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e Núcleo de Direito Concorrencial e Economia Digital da USP.

Cerca de 100 pessoas compareceram as atividades ao longo do dia, entre representantes de entidades da sociedade civil, acadêmicos e demais interessados no debate sobre direitos digitais. Confira a entrevista exclusiva com Edison Lanza:

Qual é o maior desafio para os Estados nacionais em se tratando de liberdade de expressão e regulação de conteúdo dentro das grandes plataformas de internet?
Há uma preocupação em nível nacional sobre como se modela os conteúdos nas plataformas. Por um lado, há muita pressão de países, Congressos e Estados que aprovam leis e obrigam as plataformas a derrubar conteúdos por razões de discriminação, discurso de ódio ou desinformação. Inclusive aplicam sanções penais ou multas elevadas. E acreditamos que muitas vezes isso não está de acordo com padrões internacionais, que podem gerar censura como efeito maior.

Por outro lado, as plataformas estão tomando decisões de modelar conteúdos e também derrubar outros tantos. Isso também se entende por razões que afetam seus termos e condições, suas regras de comunidade que mudam frequentemente ou que geram formas de violências, discursos que afetam seus negócios.

Essa situação está criando um espaço público onde muitos discursos que poderiam estar protegidos de acordo com o direito internacional estão sendo eliminados, sem que os cidadãos, os usuários das redes saibam. Estão aí os principais erros. Trata-se de uma censura estatal e uma censura que também pode ser privada.

E como as grandes plataformas de internet podem fazer uma regulação capaz de distinguir os conteúdos e não incorrer em eventuais atos de censura?

Eu creio que o consenso internacional que existe até hoje são os tratados dos direitos humanos, os pactos dos direitos civis e políticos, a Convenção Americana dos Direitos Humanos que estabelecem claramente que, em princípio, todos os discursos, todas as ideias e todas as formas de expressão estão protegidas pelo direito internacional. Não somente as ideias majoritárias, como as ideias minoritárias ou que podem chocar, ser fortes e disruptivas. Há uma grande amplitude.

Obviamente, há discursos que não são protegidos, que tem a ver com a ideia que incita a violência, a discriminação, um discurso que precisa ser identificado. Mas claramente, de alguma maneira, não é qualquer discurso discriminatório que está proibido, senão aquele de incitação à violência contra determinados grupos por raça, nacionalidade, orientação sexual, etc.

Eu creio que nesse sentido tem que se trabalhar muito forte para haver transparência nas decisões e para saber como se adotam essas decisões. Hoje não há transparência de ambos os lados [plataformas e governos]. Não há transparência sobre decisões que muitas vezes os governos tomam. Talvez não seja um problema na América Latina, mas está acontecendo na Índia, na Turquia, podemos dizer até na Venezuela. E também as decisões que as empresas tomam na moderação de conteúdos que estão sendo produzidos.

Edison Lanza preparando intervenção inicial no seminário “Grandes plataformas de internet e moderação de conteúdos: desafios para a liberdade de expressão e outros direitos humanos”

Durante o debate, você falou que os Estados nacionais estão perdendo força diante do poder das plataformas. Por quê?

O problema principal é que todos entendemos que a internet é global e as plataformas são apenas as conexões. Claro que também é preciso entender que há problemas que são apenas nacionais, como a atuação do Facebook no Brasil, por exemplo, não é propriamente uma discussão sobre temas globais.

Mas há outra deficiência quando muitas vezes as plataformas nem sequer possuem escritórios nos países onde atuam. Ou mesmo representação e especialistas contratados nos países, e isso gera obviamente uma desconfiança porque ninguém sabe se elas estão produzindo algum tipo de polarização, um discurso de ódio contra determinado grupo, como aconteceu no caso de Mianmar com a perseguição dos rohingyas.

Me parece que está faltando um acordo global que tenha efeitos em níveis nacionais, que possa ser aplicado aos países. E que as plataformas também tenham compromisso em nível nacional onde tenham efeitos os discursos.

Como observa os atuais mecanismos de apelação de remoção de conteúdo nas plataformas: já são suficientes? Como podem melhorar?

Os mecanismos de apelação que até agora existem são insuficientes. Muitas vezes o acesso a uma apelação de uma plataforma é um procedimento pouco transparente que nunca se responde, ou que demora muito, ou que não há clareza sobre as respostas. Muitas vezes as plataformas adotam decisões sem notificar os afetados e derrubam os conteúdos de uma conta e não explicam o porquê.

E não existem mecanismos, organismos ou conselhos independentes das empresas, que poderiam ser uma forte instância de apelação com o devido processo, ajudando a resolver parte do problema e a ter uma jurisprudência de decisões públicas, a fim de discutir e eventualmente se apresentar diante de um júri nacional para obter respostas com garantias próprias do Estado de direito.

Coalizão Direitos na Rede com Edison Lanza ao final do seminário “Grandes plataformas de internet e moderação de conteúdos: desafios para a liberdade de expressão e outros direitos humanos”

Há uma recorrência não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, sobre o problema da desinformação nas redes sociais, sobretudo o alto volume de fake news durante processos eleitorais. Como a OEA enxerga essa questão?

A desinformação é uma forma deliberada de conquistar o público. É preciso distingui-la do trabalho da imprensa. No jornalismo podem haver discussões, inexatidões ou falta de precisão em alguma notícia, mas sabemos quem escreveu e qual veículo publicou. Com as fake news não, pois é uma intenção deliberada de difundir informação tóxica, falsa e nem sequer sabemos quem é o responsável. O autor se esconde atrás do anonimato. Obviamente isso afeta o espaço do debate público, sobretudo os processos eleitorais, e contamina outros temas.

E o desafio é como combater esse fenômeno tóxico para as redes e para o debate, mas sem afetar as liberdades fundamentais, sem censura e sem penalizações. Sem nos voltarmos ao direito penal como salvação para esse problema. Os Estados, por exemplo, podem investir em informação sobre esse tema. As autoridades eleitorais, que hoje possuem canais privilegiados, também devem intervir, senão o próprio processo eleitoral pode ser afetado. As plataformas também precisam tomar uma série de medidas de transparência sobre quem contrata publicidade política em campanhas eleitorais. E investir em verificação, soluções tecnológicas para diminuir a viralização de fake news e desinformação quando se detecta esse tipo de conteúdo. Alertar o público.

E ainda a promoção de campanhas de alfabetização digital para que os cidadãos possam começar a distinguir e começar a ler não apenas as notícias, mas entender quem está por trás delas, se é um meio confiável ou não. E vinculado a isso, a sustentabilidade do jornalismo. Não pode ser que o modelo de negócio de uma plataforma remunere economicamente da mesma maneira um portal de fake news e um portal real de imprensa, que tem investimento para produzir informação de qualidade.

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